"Capoeiras, capoeiras! Gente que com a testa faz n’um instante mais espalhafato que meia dúzia de Godans ébrios a jogarem o soco; gente que com a faquinha n’uma mão e o copo na outra afronta o mais intrépido valentão, mete as vezes uma patrulha no chinelo, fazendo-a amolar as gâmbias com a maior frescura do mundo; gente garrula, provocadora, que só guarda as esquinas ou as praças do mercado, rebuçada as vezes em velha capa, trazendo o seu cacetinho por disfarce. Eis os capoeiras!
(...)
A impunidade por uma parte, a frouxidão da polícia e o deleixo de muitos senhores por outra, são as causas destas tristes ocorrências. Se não fora a muita moralidade que felizmente se observa entre nós, e o espírito manso e pacífico dos habitantes desta cidade, muitos mais desacatos se veriam praticar. Ainda assim estes arrombamentos de portas e mesmo roubos que recentemente têm havido manifestam bem que não há bastante receio dos que velam pela pública tranquilidade. E quem se não os tais capoeiras e peraltas tem ousado violar o asilo do cidadão.
(...)
‘A polícia cumpre andar vigilante. Sabe-se mui bem que a força pública é tão reduzida que mal chega para as primeiras necessidades das muitas que acodem. Não deve tolerar que depois das 9 ou 10 horas da noite circulem pretos ou certa gente suspeita pelos ângulos da cidade. Atenda bem para o que acaba de suceder no Rio de Janeiro."
O Correio da Tarde, Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1849.
Livros Referência
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808 - 1850). 2a Ed. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2004.
CONDE, Bernardo Velloso. A Arte da Negociação: a Capoeira como Navegação Social. Rio de Janeiro: Novas Idéias, 2007.
FERREIRA, Izabel. A Capoeira no Rio de Janeiro: 1890 - 1950. Rio de Janeiro: Novas Idéias, 2007.
Reginaldo Prandi - Cicatriz
“ Então, mas a coisa mais importante na transformação dos diferentes africanos, em primeiro escravos e depois em negros americanos, foi a destruição da identidade. Identidade é a coisa mais importante que existe pra um africano, por uma razão extremamente simples: o tempo do africano é diferente do tempo do ocidental. Ou seja, o tempo do africano é circular, e tudo o que acontece já aconteceu e tudo o que acontece acontecerá. E nesse processo circular, a vida se organiza em renascimentos; aí então você tem a idéia da encarnação como um elemento fundamental. Por isso que o mito é importante; porque o mito conta o seu passado – por isso que é importante você saber qual que é seu Orixá: se você sabe qual é o seu Orixá você sabe qual é o seu passado remoto, desde ali as coisas apenas se repetem, o que permite a existência, por exemplo, do jogo de búzios. Mas, então o negro, pra ele reencarnar – o negro africano, não o negro brasileiro, no Brasil isso foi destruído – o africano ele reencarna só quando ele não é esquecido. A condição básica da reencarnação é não ser esquecido pela sua família; ou seja, quando você morre, você continua sendo tratado como alguém da família, né? Agora, como você trata alguém da família? Dando comida, dando bebida, essas coisas; por isso que você faz o sacrifício. O sacrifício nada mais é do que tratar o antepassado, o morto, como alguém da casa, alguém da família, que recebe tudo aquilo, não é? Então, depois de um certo tempo, que você é cultuado, coisa e tal, e você não é esquecido – e pra isso você tem que ter muitos filhos, quem se lembre de você – é que você reencarna na mesma família, que é uma família extensa, diferente da nossa família; uma família que reúne diferentes gerações, e filhos e sobrinhos e primos. Você reencarna ali e com isso você garante a sua eternidade (...). Agora, se você tira o indivíduo de uma família e apaga a família dele, quando ele morrer, o ciclo eterno dele deixa de ser possível; porque se ele não sabe quem é, se ele não tem uma família que o cultue, se ele está perdido na memória da sua gente, ele não pode reencarnar. Então isso pro escravo era a maior tragédia; tanto que eles inventaram uma coisa, que depois foi copiada pelo Candomblé, que são as marcas feitas com agulha. Então cada linhagem fazia a sua marca. Porque se cada criança ou se cada pessoa fosse roubada, fosse pedida como escravo, fosse levada embora, e se uma dia ela pudesse voltar, ela sabia pra onde voltar. Portanto ela reencontrava-se a si mesma, se reencontrava com sua identidade. Então por isso eles eram todos marcados: por medo de perder a identidade no processo escravista. Isso era absolutamente decisivo.
Entrevista de Reginaldo Prandi feita pela Frente 3 de Fevereiro, 2008.
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